Paul Klee, The spirit on the tree trunk, 1930.
Tenho sonhado com um
violino que toca sozinho. Nos meus sonhos o violino apresenta-se para um
público de dezenas de mesas e cadeiras vazias. Sou a única que pode ouvi-lo.
Tentei contar o número de vezes que fiz uso da palavra liberdade, perdi a conta
no sete, meu número de sorte, talvez por isso precise pronunciá-la com tanta
ênfase, para que algum dia ganhe concretude. Não pretendo continuar à margem da
verdade. Ontem voltei àquele rio. Muito tempo se passou desde a última vez em
que mergulhámos naquelas águas. Tempo demais. Não me pergunte o que fui fazer
lá, você sabe, fui buscar instruções para chorar. Eu que acreditei que a Roda
da Fortuna havia finalmente girado, descubro agora que ela não passa de um
instrumento de tortura, criado pelos inquisidores para despedaçar o presente e
o futuro, rodando em paroxismos de dor para delírio dos que passam. Aquela
sequência de três cartas não queria dizer nada, absolutamente nada. Regresso do
silêncio com um nome atravessado entre os lábios, na profunda solidão dos que
estão condenados a vagar pelos becos soturnos do absurdo sem nunca ultrapassar
a rigidez imposta pelos muros. As palavras se erguem como fundições que funcionam dia e noite.
Vozes distantes deslizam pelos telhados da cidade alta e ecoam nas chaminés,
nas praças, na grama verde do parque onde vaga-lumes acendem e apagam feito
centelhas liberadas pela fumaça. Caminho entre sonhos caídos, murmúrios
abafados sobem pelas ruelas, e na tempestade de folhas que o vento espalha pela
calçada, vultos se embaralham a outros vultos e desaparecem, inexplicavelmente,
como formigas exaustas depois de cumprida a jornada. No semicerrar das minhas
pálpebras fecha-se a única passagem que poderia nos levar de volta para casa.
Pergunto-me se terei um final poeticamente justo, que nem aqueles dos livros de
Sophia de Mello Breyner Andresen: E devagar tornei-me transparente. Ou dos
filmes de Van Dormael: Mr. Nobody. Ou uma peça de teatro fulanizando o meu
adorado Hamlet: O caminho é fim, gozemos. Olho os vãos dos meus dias tentando
adivinhar a direção dos ventos, e o próprio buraco que o tempo me oferece
desloca-se. Afogo-me nas águas do meu paralelismo e descubro que, no fundo,
estamos necessariamente sozinhos. O tear das Moiras torna a lançar o fio da
vida na roca do destino. Todos olham para um lado e eu para o outro. São ciclos
dentro de ciclos que ora se fecham, ora se iniciam. Movo-me na paisagem criada
pelas minhas próprias palavras, no entanto, há uma forma, uma cor, um ritmo:
Pouso e voo; Amor e ódio; Apogeu e declínio. Eu bem-te-vi, na leveza dos
pintassilgos, na liberdade dos pardais, na elegância das garças, encontro de
todos os bicos, inclusive os nossos.
lídia martins
6 comentários:
Meu Deus...Como pode ser tão próximo-distante este momento que apara a dor de tudo o que se vive? Como se poderia aproximar-se sem o distanciamento necessário e num vôo rasante, reiniciar a dor vívida e a luminescência sem sair do ar e sofrer? O Amor nos dá asas supremas. É viver ou Viver. Preferimos os dois.
Uma saga um conto uma narrativa que a poeta exerce em mergulhos sucessivos, em espirais que buscam um sentido ns roda da fortuna. Sorte de quem lê e tem a chance de ser personagem desse amor à vida por meio do amor às palavras
Saudades de voltar a esta varanda com vista para o imaginário de quem ousa o vôo sem se mover. Texto que chega como uma espécie de sopro redentor sobre a engrenagem do pensamento, e que, pela mecânica dos olhos me encanta e emociona. É tanto desabar junto às muralhas. Lá fora, o tempo, indiferente, continua a mover montanhas.
A pássara pousou.
Que saudade das suas palavras, derramadas sobre o papel.
(Adorei a trilha permeando a leitura)
Vou lê-la de novo e voltarei aqui.
Beijos e_ternos!
Há espaço para o perdão e mais um amigo?
Sete é conta de mentiroso
Dizia meu avô
Mas ouço o violino ruidoso
Antes de alçar vôo
Pois a linha que desalinha para quem caminha avizinha, passarinha
Pois eles passarão
Pelo chão
Não por prazer
Por condição
Então para não padecer
É melhor escrever
Gozemos
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